A era da irrelevância.


A era da irrelevância.

Um dos subprodutos mais curiosos da democracia digital é o gosto generalizado pela tagarelice e pelos assuntos irrelevantes, que parece ter tomado conta, como uma erva daninha, do debate público.

Assuntos irrelevantes são essas coisas que geram bate-boca e algum calor, em regra na internet, por 24 ou 36 horas, e depois simplesmente desaparecem, sem deixar rastro.

Foi o caso do debate sobre a cor da roupinha das crianças, a partir de um vídeo da ministra-pastora dos Direitos Humanos. Li muita gente argumentando, em tom aparentemente sério, que aquilo tudo era bastante grave, escondia um atroz preconceito e fatalmente levaria a mais violência contra populações trans e LGBT.

Durante a campanha, lembro do debate próximo à histeria sobre uma suposta proliferação de grupos nazifascistas que andariam pela ruas do país atacando mulheres e homossexuais. Gente muito boa sugeriu que havíamos voltado aos anos 30, na Alemanha, com base no episódio da moça que teria sido marcada com uma suástica no Sul do Brasil.

Depois se descobriu que era tudo falso, mas ninguém pareceu preocupado ou se desculpou. Partimos alegremente para a próxima besteira.

Na transição, por um ou dois dias, discutimos o hábito do novo presidente cumprimentar todo mundo fazendo continência . Primeiro foi com um assessor americano, depois foi a um jogador do Palmeiras. Depois disso o assunto perdeu a graça.

Antes da posse, discutimos intensamente se o presidente iria desfilar em carro aberto ou fechado, entre a Catedral e o Congresso Nacional. Depois discutimos o que fazia o primeiro-filho sentado na traseira do Rolls-Royce, e logo depois (com direito à manchete no The Washington Post) o significado da “saudação militar” feita pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro (que no fim era apenas um movimento com a mão, no discurso em Libras).

Na última semana, dedicamos intensos dois ou três dias fazendo graça com a viagem dos novatos deputados do PSL à China e seu bate-boca com Olavo de Carvalho.

E ainda ontem, muita gente graduada discutia, com ares de grande coisa, a gravíssima atitude do presidente almoçar em um bandejão de supermercado, no centro de Davos, e o fato de ele ter usado um teleprompter em seu pronunciamento.

A lista é saborosa e poderia ir longe. Irrelevâncias e não acontecimentos se tornaram uma espécie de pão nosso de cada dia, no debate atual.

É evidente que não há como definir bem estas coisas. A aprovação de um rombo na Lei de Responsabilidade Fiscal, pelo Congresso, é mais ou menos importante do que o último desmentido presidencial? O que vale mais, discutir a independência do Banco Central ou a troca de farpas da ministra da Agricultura com Gisele Bündchen?

Desconfio que, no fundo, temos uma boa noção sobre isto. Se o debate público valesse alguma coisa, levaríamos as coisas mais a sério. O sujeito que é acionista da empresa não gasta seu tempo, na reunião do conselho, tagarelando sobre o barraco da festa de final do ano.

Não o faz por uma razão simples: sua opinião pesa e ele não irá perder seu tempo com besteira. Na democracia, é o contrário: a opinião do cidadão vale muito pouco. Seu incentivo para levar alguma coisa realmente a sério é quase nenhum.

Isto sempre foi assim, nas democracias, mas o fato é que a emergência das mídias digitais deu uma outra dimensão ao fenômeno.

Uma razão para isto diz respeito ao custo da informação. Há 30 anos, emitir uma opinião dava muito mais trabalho. Implicava em escrever um artigo, dar uma entrevista na rádio ou imprimir alguma coisa por conta própria e depois distribuir na fila do cinema ou do posto de saúde.

Me lembro de tudo isto, nos anos 80.

A democracia digital explodiu essas coisas. O debate público se tornou vítima do instantâneo. Há informação demais, discussões demais, sem permitir que o tempo se encarregue de depurar os acontecimentos e separar o que importa daquilo que não passa de lixo em forma de palavras e imagens.

Há duas notícias preocupantes aí: a primeira é que isto não faz bem à democracia. A qualidade do debate público, por óbvio, afeta a escolha pública. Quanto mais toxina ideológica espalhamos por aí, mais perdemos tempo e capacidade de gerar consensos e fazer as coisas que importam andar pra frente.

A segunda notícia é que se trata de um estado de coisas que veio para ficar. O modus operandi das mídias sociais contaminou a todos, a liderança política, os intelectuais e (ao menos boa parte) da mídia profissional.

E mais: fez com que o eleitor, agora transformado em um ativista digital, passasse a se comportar como um pequeno político, usando da retórica e reproduzindo, um a um, todos os vícios que ele vê nos políticos contra os quais esbraveja.

Estamos diante de um problema sem saída. Todo mundo conhece o vaticínio de Umberto Eco, segundo o qual a internet fez com que o idiota da aldeia fosse promovido a portador da verdade.

O que imagino nem Umberto Eco esperasse era o efeito inverso: que também a elite usualmente tida como portadora da verdade passasse a se comportar, no dia a dia, como o idiota da aldeia.


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